sábado, 27 de fevereiro de 2016

HERÓIS



    Ao entrar na cozinha, Alice não pôde deixar de reparar no quão diferentes aquelas pessoas eram umas das outras. Enquanto Gabriel emanava tranquilidade, um garoto alto e moreno parecia estranhamente melancólico. Havia também uma garota, visivelmente passando pelos últimos anos da adolescência.
  -Você é o mais velho, deve ser o comandante então. Pode começar a falar- disse Alice, se dirigindo à Gabriel em tom de acusação.
  - Na verdade, esse posto me pertence- respondeu o garoto melancólico enquanto sorria.- Eu sou o ancião por aqui.
  -Primeiro, me permita apresentar à você minha pequena família. -Disse Gabriel com um aceno- Gabriely, Nícolas e nosso auto proclamado ancião, Ítalo.
  -O que querem comigo?
  -A vida não é linha reta, mas um círculo- Gabriely encarou Alice sugestivamente, como se esperasse que ela entendesse alguma mensagem secreta.
  -Vocês são lunáticos. Não sei o que pensam que estão fazendo, certamente sequestraram a pessoa errada.
  -Não sequestramos você- repetiu Nícolas baixinho.
  -Isso é algum tipo de brincadeira? Vocês tem uma seita? Me trouxeram aqui para me sacrificar?
  -A vida não anda em linha reta- começou Gabriel, de forma mais paciente do que a garota que havia falado sobre linhas e círculos anteriormente.- Você nasce tendo um trajeto traçado. Antes mesmo de vir ao mundo, seus pais fazem planos para você. Escola, boa faculdade, bom marido, bom emprego. filhos. Se a vida andasse em linha reta, você teria tudo na hora certa, na ordem certa, perfeitamente sincronizado.
  "Mas a vida anda em círculos, e esses círculos às vezes se entrelaçam. É exatamente como as coisas devem ser quando seguem sua ordem natural. No entanto, muitas pessoas tentam mudar os círculos. Esticá-los modelá-los conforme sua vontade. E então tudo colide, o que é, o que deveria ser e o que jamais será. Você já ouviu falar em efeito borboleta, acredito eu. Acho que pode-se considerar a representação perfeita do que quero dizer. Algumas pessoas lá fora são borboletas tentando bater as asas inconsequentemente, e alguém tem que impedi-las de causar uma catástrofe."
  -Então vocês esmagam as borboletas que representam perigo?
  -Digamos que sim- Respondeu Nícolas-  É uma tarefa difícil, mas alguém tem que cumprir.
  -E o que isso tem a ver comigo? Eu não sou um perigo.
  -Sabemos disso- Gabriel seguia tão paciente quanto antes- Na verdade, acreditamos que possa nos ajudar.
  -Sou contra maus tratos aos animais. Se as borboletas querem bater asas, deixe que batam. Não vou me meter nisso.
  -Não são borboletas- começou Nícolas com um suspiro- São pessoas, o que Gabriel tentou dizer...
  -Eu entendi o que ele quis dizer- interrompeu Alice.- E se não me deixarem sair, minha família dará pela minha falta. Vocês terão problemas.
  -Nós não somos os vilões! - Gabriely parecia perplexa- Você precisa entender o que somos antes de tomar partido contra nós...
  -Não se incomodem em me mostrar a saída- Disse Alice, já dando as costas. Eles eram quatro, ela apenas uma. Se não contasse com o fator surpresa, que vantagem teria?
  -Sabe que vamos nos encontrar novamente, não é?- Disse Gabriely, enquanto a outra saía- Isso está perfeitamente visível no seu futuro!


  Alice andou rápido pelas ruas, evitando olhar para desconhecidos. Sabia que aquelas pessoas não teriam dificuldade em encontrá-la se quisessem, então estava decidida. Procuraria a polícia assim que possível e contaria tudo. No entanto, o que exatamente poderia contar? Sabia que havia desmaiado; lembrava-se disso perfeitamente. E o que poderia estar errado com uma família que ajuda uma garota inconsciente? Que provas tinha de que estariam fazendo algo ilegal? Não poderia fazer isso. E se colocasse sua própria família em risco? Jamais se perdoaria.
  Mal se lembrava de ter chegado em casa. Desviou das perguntas da mãe e se trancou no quarto, ansiosa por ficar sozinha. Decidiu que seria melhor anotar tudo, ter todos os detalhes possíveis caso algo acontecesse com ela. Anotou em um velho caderno cada nome e cada detalhe do qual lembrou. Foi quando percebeu que havia visto Ítalo antes de desmaiar. Ele era o último rosto do qual se lembrava, antes de tudo ficar escuro. Não seria então possível que houvesse exagerado? O rapaz a viu cair e a levou para casa, onde o líder do grupo a falou sobre a forma como tentavam ajudar o mundo. O fato de já ter visto Gabriel e Nícolas antes nada significava; era uma cidade pequena e as pessoas se esbarravam o tempo todo. Seria possível que estivesse ofendendo pessoas que tentaram ajudá-la? Tinham uma filosofia estranha, isso era óbvio, mas talvez fosse apenas uma questão interna...
  A imagem de Gabriel espreitando no cemitério acompanhado por Nícolas apareceu diante de seus olhos e então se lembrou de que eles a estavam seguindo. Com cautela, guardou o caderno com as anotações em uma gaveta e sentou na cama. Fechou os olhos e se permitiu pensar no avô, em como gostaria de ter conversado com ele, conhecido melhor sua história enquanto havia tempo.
  Abriu os olhos a tempo de ver o vidro da janela se estilhaçando enquanto gritava.

terça-feira, 23 de junho de 2015

UMA CONVERSA AMIGÁVEL



     Nicolas dirigiu-se até o sofá em que Alice se encontrava, sabendo que deveria ser breve antes que o álcool no lenço secasse. Esperava que ela gritasse ao acordar, ou pior, que ela chorasse. Pessoas gritando não o assustavam, já havia lidado com isso antes. Mas a possibilidade de ver qualquer um chorando o apavorava. Evitando tocá-la, observou enquanto a menina abria os olhos e piscava confusa, encarando o teto. Então, repentinamente ela se sentou e...
     -Ai! Você deveria ir mais devagar- Nicolas disse enquanto esfregava a testa, uma leve dor se manifestando após as cabeças se chocarem.
     -Onde eu es... O que você fez comigo? VOCÊ ME SEQUESTROU?- Gritou Alice, os olhos arregalados de surpresa ao ver Nicolas.
     -É claro que não, que ideia é essa?
     -Você é o pior sequestrador do mundo, eu juro.
     -Eu não te sequestrei.
     -Minha família não tem dinheiro, não adianta me manter aqui.
     -Escuta, eu não te sequestrei.
     -Você viu no cemitério, nós não temos dinheiro pra uma fiança e...
     -EU. NÃO. TE. SEQUESTREI- Nicolas gritou, e se arrependeu na mesma hora.
     -Você está gritando comigo- Alice estava com os olhos marejados, odiava que gritassem com ela. - Por que está gritando comigo?
     -Você não estava ouvindo. Sinto muito, eu não queria ser rude. 
     -Esquece- disse Alice, evitando olhar para o rapaz.- Que lugar é esse?
     -Bem-vinda ao recanto- Nicolas fez um gesto largo, como se quisesse abranger toda a casa.- Aqui moram muitas pessoas com algumas habilidades diferentes das comuns.
     -Sei, esse aqui é o Refúgio dos Mutantes sem Graça, é isso?
     -Basicamente isso- disse Nicolas com um sorriso.
     -Por que eu estou aqui?
     -Você desmaiou e te trouxeram para cá.
     -Você me trouxe?
     -Não...- Nicolas sentiu que estava começando a ficar vermelho- Mas isso não importa agora. Você precisa se alimentar.
     -Na verdade eu preciso entender o que é tudo isso. Não estou conseguindo acompanhar toda essa história. Você me disse que você tem um talento especial, não é?
     -Sim- Nicolas respondeu calmamente, imaginando o rumo que a conversa tomaria.
     -Me mostre.
     -Não sei se seria apropriado.
     -Por que? É perigoso?
     -Apenas um pouco inconveniente.
     -Como?- Perguntou Alice, se aproximando.
     -É um tipo de visão super desenvolvida- respondeu Nicolas, tentando se livrar do momento constrangedor, mas desistindo pois a expressão de confusão no rosto da garota deixava claro que ela esperava por mais explicações.- É como se eu fosse uma máquina de raio-x ambulante.
     -Jura? Qual é a cor da minha regata?- perguntou Alice olhando para baixo, para se certificar de que o casaco estava fechado o suficiente, impedindo que Nicolas trapaceasse.
     -É verde e tem um desenho de uma girafa com a frase "Cabeça nas nuvens"- Nicolas respondeu em voz baixa.- Satisfeita?
     -Na verdade, não- Alice balançava a cabeça como se tentasse espantar uma mosca. Não era muito confortável saber o quão exposta estava naquela casa.- Mas vou parar antes que sua cabeça exploda.
     -O que quer dizer?
     -Quero dizer que você está tão vermelho que estou com medo de que suas orelhas soltem fumaça.
     -Você precisa se alimentar- disse Nicolas, implorando mentalmente para que mudassem de assunto.
     -Eu sei. Moram mais pessoas aqui?
     -Sim, você já vai conhecê-los. Está nervosa?
     -Eu nunca fico nervosa- respondeu Alice enquanto se levantava.
     -É, eu já percebi- Nicolas resmungou desviando o olhar.
     
     

sexta-feira, 19 de junho de 2015

LIGAÇÕES



     Alice não conseguiu dormir naquela noite. Disse para a mãe que estava com dor de cabeça e se trancou no quarto, Helena estava tão cansada que sequer reparou que a filha estava nervosa. A voz de Nicolas ainda ecoava na cabeça da menina quando as primeiras horas da manhã chegaram. Sabia que não tinha razão para sequer considerar o que ele havia dito; não havia a menor chance de haver algo errado com ela. Ela não era popular e animada como a maioria das pessoas de sua idade, mas não havia absolutamente nada de estranho em ser um pouco resguardada. Viviam em um mundo louco, e quanto mais distante ficasse das pessoas, menos chances tinha de se ferir, era o que dizia a si mesma.
     Mas dessa vez era diferente. Não fazia sentido aqueles dois homens aproximarem-se dela durante o enterro do avô, não conseguia entender o motivo de fazerem isso. E não conseguia parar de pensar em Nicolas. Ele não parecia o tipo de pessoa que faz piadas e havia algo nos olhos sérios e cinzentos que deixava claro que ele não estava mentindo, pelo menos não que soubesse.
     Quando o sol finalmente transformou a madrugada em manhã, Alice estava se sentindo sufocada. Se arrumou ligeiramente e saiu sem esperar que a mãe ou a irmã acordassem, poderia ligar da rua mais tarde. Não sabia onde estava indo nem o que procurava exatamente, apenas queria se afastar de tudo por algumas horas, deixar a mente vagar livremente. Caminhou sem prestar muita atenção para onde ia, sabendo que precisava desesperadamente de comida e repouso, mas ignorando os protestos do próprio corpo. Ocorria a ela que, caso dormisse, poderia sonhar novamente com coisas inexplicáveis, e se isso acontecesse teria que admitir que Nicolas estava falando a verdade. Após um bom tempo, começou a se sentir realmente exausta, a visão entrando e saindo de foco. Dobrou a esquina próxima a uma banca de jornais e reparou em um garoto de pele morena que já parecia a estar observando havia algum tempo, mas ela estivera distraída demais para reparar. Foi a última coisa que registrou antes de a visão escurecer.
   
     -O que foi que você fez com ela?- perguntou Gabriely, observando Italo carregar uma garota inconsciente porta adentro.
     -Ela desmaiou na esquina- respondeu Italo, largando a menina no sofá.
     -Na esquina? Quer dizer na NOSSA esquina?
     -Mais ou menos isso.- respondeu o outro, ouvindo os passos de Nicolas no corredor- Tente não fazer um escândalo, seu irmão pode ficar nervoso com isso.
     Ambos observaram enquanto Nicolas entrava na sala, as mãos no bolso da calça de moletom, indiferente como sempre. Então ele viu o corpo de Alice e congelou, engasgando com a própria respiração.
     -Mas... O que você... Ela...
     -Ela apenas desmaiou. E eu não fiz nada; estava apenas a vigiando, como combinamos. Eu a segui desde que saiu de casa, por algum motivo ela parecia estar vindo para cá.
     Gabriel, que havia entrado na sala logo após Nicolas, foi para a cozinha sem falar nada. Podia ouvir Nicolas gaguejar enquanto Italo garantia a ele que não havia acontecido nada à garota; seria melhor acordá-la antes que aquilo tudo virasse realmente uma discussão.
     -Aqui.- disse ele retornando à sala e estendendo um pano embebido em álcool para Nicolas- Vamos resolver isso.
     -Espera, não podemos fazer isso assim. Ela vai acordar assustada, e ela já conhece vocês dois,- disse Gabriely, olhando de Nicolas para Gabriel- vai achar que nós a sequestramos. É melhor que só uma pessoa esteja aqui quando ela acordar.
     -Tem razão.- ponderou Gabriel- Deixem o Nicolas fazer isso, vamos para a cozinha.
     -Mas ela já conhece ele também, é melhor que eu faça. Ela não sabe quem eu sou, e vai se sentir mais segura por eu ser mulher.
     -Ela vai se sentir insegura por não te conhecer.- disse Italo- Dois desconhecidos já abordaram ela ontem, é melhor que seja o Nicolas mesmo.
     -Parem de falar e saiam.- disse Nicolas em um sussurro, olhando para o chão- Isso já vai ser bem difícil sem todo esse drama.
   
     -Por que tenho a sensação de que você está tentando aproximar meu irmão dela?- Perguntou Gabriely, sentando-se à mesa da cozinha.
     -Eles parecem compatíveis- foi tudo o que Gabriel disse.
     -Compatíveis? Eles conversaram por cinco minutos e ela não acreditou em uma palavra do que ele disse. Não parece uma história muito boa sob meu ponto de vista.
     -É verdade.- respondeu Gabriel calmamente- Mas ela o reconheceu no cemitério.
     -Como assim? Pensei que eles jamais tivessem tido contato antes.- Italo parecia chocado; Gabriely apenas levantou as sobrancelhas- Você não nos contou esse detalhe.
     -Eu não entendo a ligação entre eles, então não há muito o que contar. Tudo o que sei é que ontem, assim que ela o viu, ela soube quem ele era.
     -Isso está me parecendo o enredo de um filme horrível- disse Gabriely, com as sobrancelhas ainda levantadas.
     -O tipo de filme que tem final feliz?- perguntou Gabriel sorrindo.
     -O tipo de filme em que o psicopata mata a si mesmo por engano no final- respondeu a menina, fechando a cara enquanto os outros dois riam.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

APRESENTAÇÕES



     -Você!- Disse Alice, tentando parecer firme.
     -Eu? Você sabe quem eu sou?- Perguntou Gabriel lentamente.
     -Não, você não. Ele. Eu sei quem você é, você...- Alice se interrompeu. Como diria aquilo? Como diria que ele a estava espionando pelo espelho do banheiro? Seria ridículo dizer isso em voz alta, nem ela acreditava em tal teoria.
     -Eu o quê?
     -Não era você.- Tentou parecer apenas confusa, ao invés de confusa e assustada- Eu me enganei, sinto muito.
     -Tudo bem. Alice, gostaríamos de conversar com você, se não for incômodo- Contrariada, Alice voltou os olhos para Gabriel.
     -Como sabe meu nome?
     -Eu sei muita coisa. Se você permitir, eu posso explicar.
     -Como sabe o meu nome?- Odiava que falassem com ela daquela forma, como se ela fosse uma criança tentando discutir com um adulto.
     -Eu conheci seu pai, Alice.
     -Isso é loucura, eu nem sequer sei quem ele é.
     -Mas eu sei. Me deixe explicar.
     Alice procurou a mãe com os olhos para se certificar de que Helena não a viria sair. Sabia que não era o mais inteligente a fazer, pois aqueles dois poderiam ser qualquer coisa, mas sentiu a necessidade de sair sem ser notada. Seguiram para um canto mais afastado, a presença de Nicolas a perturbava mesmo tendo Gabriel entre os dois.
    -Vou deixar que conversem.- Disse Gabriel- Acredito que a conversa irá fluir melhor se eu não estiver escutando.
    -Mas Gabriel, eu não... Ela não...- Nicolas parecia perplexo, Alice tinha a sensação de que ele teria um ataque histérico- Não foi o que combinamos.
    -Vamos improvisar um pouco então- Gabriel sorriu para o garoto encorajando-o e começou a se afastar.
 

    -Quem são vocês?- Alice falou pela primeira vez desde que Gabriel os deixara. Ela e Nicolas passaram por um longo período de silêncio; ela enfim cansou e se sentou na grama. Encarava o rapaz de baixo agora.
    -Eu me chamo Nicolas. Sou aluno do Gabriel.
    -Isso eu sei, mas não responde minha pergunta.
    -Somos um grupo de pessoas um pouco diferentes, mas não somos maus, se é o que quer saber.
    -Um grupo?- Alice ergueu as sobrancelhas- Quer dizer que não são apenas vocês dois?
    -Atualmente, somos quatro pessoas. Cinco, se contarmos você.
    -Quatro, então. O que ele quis dizer quando falou sobre meu pai?
    -Ah, não.- Disse Nicolas, levemente perturbado- Eu não sei sobre isso, você vai ter que perguntar diretamente ao Gabriel.
    -O que você tem que me falar? Ele te deixou aqui por algum motivo, não foi?
    Gabriel respirou fundo. Já havia passado por isso antes; mas era completamente diferente. Gabriely o conhecia, confiava no irmão. Alice claramente pensava que ele era algum tipo de religioso lunático que a convidaria para uma seita, era óbvio que ela não acreditaria no que quer que ele dissesse. Resolveu sentar no chão também; talvez fosse mais fácil se seus olhos estivessem na mesma altura.
     -Você tem alguns sonhos estranhos, não tem? Alguns te dão uma visão clara de coisas que ainda não aconteceram, outros são sonhos com monstros...
    -Como sabe disso?
    -Minha irmã viu alguns deles.- Alice o encarava com total descrença; Nicolas sabia que ela iria embora em menos de dois minutos.
    -Sua irmã viu... Os meus sonhos? É isso?
    -Basicamente, sim.
    -E cadê a sua irmã? O que querem de mim?
    -Minha irmã está me esperando. O que queremos é te oferecer ajuda para entender isso tudo.
    -Você acha que está ajudando agora? Se a resposta for sim, sinto muito em dizer, a sua ajuda é péssima.
    -Eu não estou te ajudando ainda. Estou apenas tentando te explicar que você é diferente.
    -E o quê mais? Eu sou uma bruxa, você é um vampiro e o seu professor é um lobisomem?
    -Isso não é um roteiro de filme para adolescentes, Alice.
    -Melhor assim, seria um filme horrível.
    -Bem, pra falar a verdade, provavelmente seria.
    Nicolas observou surpreso enquanto a garota gargalhava; estivera esperando a pior reação imaginável durante a conversa toda.
    -Então, tenho que te ajudar a atravessar um portal ou a reunir os pedaços da alma de um homem muito malvado, é isso? Tem gente querendo te matar?- Agora ela estava deliberadamente ironizando a situação, e Nicolas não tinha certeza se era essa a intenção de Gabriel.
    -Sim. Quero dizer, provavelmente tem alguém querendo me matar, mas isso não tem a ver com você. Você é, acredito eu, um tipo de vidente. Não sei dizer até onde sua capacidade vai, mas você tem um dom latente.
    -Não acredito em nada disso.- Disse Alice, já se levantando- Vocês são loucos. Adeus.
    -Em breve nós seremos cinco- respondeu Nicolas, aumentando o tom de voz enquanto a garota se afastava.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

O ENCONTRO



     Todos os preparativos haviam sido feitos, incluindo planos de emergência caso algo não saísse bem: Gabriely e Italo permaneceriam no carro com o motor ligado, Italo telefonaria caso percebesse que algo estava errado, Gabriel falaria e Nicolas observaria. Ninguém entendeu o motivo de Gabriel ter pedido que Nicolas o acompanhasse. Gabriely era péssima motorista, Italo sequer sabia dirigir. Seria muito mais prudente Nicolas permanecer no carro, mas mesmo sabendo disso, Nicolas não reclamou. Havia algo na ideia da aproximação- sem truques, sem a necessidade de permanecer escondido- que o fez querer estar em ação. Repassaram cuidadosamente o plano antes de deixar o Recanto; Gabriel estava confiante, Gabriely mal humorada, Nicolas inquieto e Italo, mais silencioso do que o habitual.
     -Que roupa é essa?- Perguntou Gabriely, encarando o irmão.
     -Queria que eu usasse o quê? Meu vestido de baile?
     -Não, mas também não imaginei que fosse se fantasiar de padre- respondeu quase gritando, enquanto o outro saia da sala.
     Nicolas entrou no quarto e trancou a porta. Foi até o guarda-roupas e percebeu o que a irmã queria dizer: olhando seu reflexo no espelho na porta do armário percebeu que, devido à pressa e à distração, vestira-se de com roupas grandes demais e pretas dos pés à cabeça. Praguejando, arrancou a camisa e colocou outra aleatoriamente. Parou um momento para analisar a própria aparência, coisa que raramente fazia; espantou-se ao ver o quão cansado parecia. Os olhos cinzentos destacavam-se no rosto anguloso, quase quadrado. Os cabelos dourados, quase castanhos, cortados de qualquer forma por Gabriely, caiam em cachos sobre a testa, emprestando-lhe uma aparência um pouco mais jovem. Não havia percebido, mas desenvolvera músculos nos últimos meses. Observando o conjunto, percebeu que estava apresentável. Não que isso importasse: não havia ninguém a quem quisesse impressionar. Repetiu isso mentalmente até chegar de volta à sala e encontrar três rostos desconfiados encarando-o, no entanto ninguém disse nada.

     Alice observou enquanto as pessoas se organizavam próximas ao caixão, sem sentir vontade de se aproximar. Sabia que isso não somaria pontos em sua tentativa de ser compreensiva, no entanto não fez esforço algum para chegar perto de onde jazia o corpo do avô. Sentia-se estranhamente consciente, como se a noite em claro tivesse o mesmo efeito que uma dose extra grande de cafeína sobre ela. Tentando ao máximo não demonstrar sua inquietude, ficou sob uma árvore, sabendo que a mãe não daria por sua falta até que a cerimônia acabasse. A posição em que estava permitia que assistisse ao enterro do avô, mas a obrigava a ficar de costas para a entrada do cemitério. E foi por isso que ela não viu quando Gabriel e Nicolas passaram pelos portões.
     -Com licença.
     Alice virou-se, pronta para dar de cara com algum amigo idoso do avô e ter que explicar que já voltaria para o enterro, que apenas se afastou por ter se sentido desconfortável. Para sua surpresa, um homem aparentando ter em torno de 40 anos a encarava educadamente; a pele clara contrastava com o blazer negro, o par de olhos miúdos e escuros a fitavam como se esperasse que ela o reconhecesse.
     -Posso ajudar?
     -Sim, na verdade pode. Me chamo Gabriel, e esse é meu aluno, Nicolas.
     Foi então que ela o viu. Ele estivera, de alguma forma, escondido atrás de Gabriel, o que parecia impossível considerando que o garoto era visivelmente mais alto do que o professor. E ele realmente era alto, talvez 1,85 metros de altura. Vestia roupas simples, nada que chamasse a atenção, as mãos firmemente enfiadas nos bolsos e os cabelos desarrumados. Após reparar nesses detalhes, voltou-se para o rosto dele e congelou. Reconheceria aqueles olhos em qualquer lugar.
   

domingo, 31 de maio de 2015

O FUNERAL



     O dia passou rápido desde que Alice voltou para casa. Não tinha nada planejado, então se ocupou com afazeres domésticos, se esforçando para manter o pensamento longe dos acontecimentos recentes. Já havia prometido a si mesma não contar a ninguém sobre os sonhos ou a ilusão de ótica no espelho- não queria que pensassem que ela era maluca. Não havia nada de errado com ela, se dormisse algumas horas a mais certamente o problema estaria resolvido. Por enquanto, bastaria se manter ocupada até que estivesse tarde o bastante para tentar dormir. 
     Alice morava com a mãe, o padrasto e a irmã mais nova em uma casa de tamanho médio na cidade de Corvos, ao sul do estado de Galeses. Com a mãe eventualmente fotografando eventos, o padrasto trabalhando fora o dia inteiro e a irmã na escola, grande parte dos cuidados com a casa ficavam por conta da garota. Naquele dia a mãe estava em casa e não havia muito o que fazer, então se concentrou em arrumar o guarda-roupas. Ouviu o telefone tocando no cômodo ao lado.
     -Alô?- a voz da mãe chegava baixa ao seu quarto.
    -Como? Quando isso aconteceu?
    O silêncio que se sentiu foi angustiante. Alice sabia, pelas palavras da mãe, que havia algo errado, mas não queria sair do quarto a ter que assumir que estava escutando a conversa. Ouviu quando a mãe largou o telefone com força sobre alguma coisa- a mesa, talvez?- e se preparou para o que quer que estivesse por vir. Helena era uma mulher calma, jamais jogava ou batia coisas, a menos que estivesse muito desconcertada. Respirando fundo, Alice saiu do quarto e encontrou a mãe curvada, apoiando a mão sobre a mesa.
     -Mãe? O que houve?
     -Seu avô. Temos que ir.
 
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     As paredes do hospital eram brancas, o que não era exatamente uma novidade. No entanto, aguardar notícias sem ter lugar algum para onde olhar, exceto as paredes- brancas, nuas, indiferentes- era desesperador. O médico havia dito que o avô de Alice sofrera um infarte e as chances, considerando a idade avançada, não eram boas.
     Alice acompanhou Helena até o hospital e lá permaneceu em silêncio, evitando contato visual com a mãe. Priscila, a irmã mais nova de Alice, chegaria ao hospital em breve; ela estava na escola quando a mãe ligou informando do ocorrido. Avistaram o médico que cuidava do avô se aproximando e souberam, pela expressão que ele apresentava, que não teriam notícias boas.
     -Como ele está?
     -Eu sinto muito. Fizemos tudo o que estava ao alcance, mas a saúde de seu pai estava muito frágil...
     -Quer dizer que ele não vai resistir? Eu... Posso entrar para vê-lo?- Disse Helena com os olhos marejados.
     -Ele já se foi. Eu realmente lamento.
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     Alice sabia que a mãe estava esgotada mas não teve coragem de ir até ela. Era péssima em lidar com sentimentos, e sabia que não ajudaria em nada ficar em volta da mãe. Passariam a noite no velório do avô, e no dia seguinte seria o enterro; não imaginava o que deveria esperar disso. Nunca fora a uma cerimônia fúnebre antes e, se não fosse pela mãe, não iria ao funeral do avô. Separou uma calça jeans confortável, colocou a jaqueta preta e prendeu os cabelos, parando para analisar a própria imagem no espelho. Sempre evitou espelhos grandes, incomodada por não ser magra como gostaria. Os cabelos, uma mistura de cachos com crespos que herdara da mãe, os olhos castanhos, a pele negra, os 1,67 metros, nada lhe agradava muito. Mesmo assim, queria ter certeza de que estava parecendo decente para se despedir do avô.
     Chegaram à pequena capela, vazia a não ser por alguns poucos parentes que não conheciam muito bem. Os avós de Alice se separaram antes de ela nascer, o avô casou-se novamente e construiu uma nova família ao lado da segunda esposa, mantendo uma proximidade cuidadosa, quase formal, com a ex-mulher. Helena via o pai poucas vezes por ano; Alice raramente via o avô. Era estranho saber que ele havia partido, como saber da morte de alguém muito distante. Ela e a irmã se sentiam intrusas ali, sequer sabiam os nomes daquelas pessoas.
     -Se importa se eu sair um pouco?- Perguntou Alice em voz baixa algumas horas depois.
     -Não,- a mãe sussurrou em resposta- vamos ficar bem, só não fique andando por aí. Está tarde.
     Alice saiu da capela para o ar frio da madrugada, pensando em como a mãe deveria estar se sentindo. Com as filhas e o marido por perto, Helena estava se esforçando para ser forte, mas era visível que ela desabaria quando ficasse sozinha. Não conseguia imaginar como era perder alguém assim. Alice nunca conheceu o pai; até onde sabia, ela era fruto de uma única noite de irresponsabilidade e a mãe havia assumido sozinha a responsabilidade pela filha. Lembrava-se de ter sentido ciúme quando Priscila nasceu. "Ela tem duas pessoas que amam ela, eu só tenho uma", reclamara para a mãe. Helena apenas abraçou a filha e prometeu que faria de tudo para que ela ficasse bem. Priscila já tinha 15 anos, Alice 21. A mãe cumpriu a promessa.
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     -Está de volta cedo,- disse Gabriel, sentando-se em uma poltrona na sala- tudo bem com a menina?
     -Em partes. Quando cheguei ela não estava, então aguardei escondido. Ela chegou um tempo depois, acompanhada da mãe e da irmã; estavam vindo do hospital.
     -Hospital?- Disse Nicolas, levantando a cabeça- Ela está bem?
     -Sim, ela está.- Respondeu Italo, dirigindo um olhar desconfiado ao amigo- O avô dela faleceu. Ela vai passar a noite no velório e amanhã irá para o enterro, pelo que sei.
     -Então temos um plano?- Perguntou Gabriel.
     -Eu proponho que falemos com ela no cemitério- Gabriely se manifestou pela primeira vez.
     -Isso seria perturbador
     -Exatamente, Nicolas. Ela vai estar de guarda baixa e teremos mais chance de convencê-la a nos escutar.
     -Amanhã, então?- Nicolas começou a ficar inquieto.
     -Sim,- respondeu Gabriel- mas é melhor que dois de nós esperem no carro.
     -Nicolas e Gabriely esperam, você e eu falamos?- Propôs Italo.
     -Na verdade, Italo, eu gostaria que você fizesse companhia a Gabriely. Nicolas pode me acompanhar.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

A TROCA



     -Está saindo?
     -Sim, mãe. Quer algo da rua?
     -Não, pode ir tranquila.
     O vento frio do final de agosto trouxe um cheiro amargo até Alice, clareando sua mente. Não havia nada a temer. Conhecia aquelas ruas, crescera naquela cidade. Não havia ninguém com olhos cinzentos a perseguindo. Tentou controlar a respiração, inspirando fundo, como aprendera anos atrás em um livro, e isso realmente ajudou. "Belo exemplo de covardia", pensou consigo mesma, rindo do fato de ter deixado o sonho da noite anterior influenciar na sua percepção da realidade. Começou a caminhar mais devagar, permitindo-se relaxar e aproveitar a brisa fria que lhe soprava o rosto, indicando que logo o inverno daria lugar à primavera. Começou a prestar atenção aos anúncios e vitrines na rua, toda a variedade de produtos e serviços que conhecia tão bem, como todo o resto da cidade. Realmente, não havia nada a temer.
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     -Saber quem somos? Você acha que ela está  pronta para saber quem somos?- disse Gabriely, a voz levemente alterada- Ela não sabe nem quem ela é. Como planeja dizer isso a ela?
     -Eu estava pensando em um cartão postal com os dizeres: "Parabéns! Você é uma anormal". Acha muito exagerado?
     -Eu falo sério, Nicolas. Não se pode entrar na vida de uma pessoa assim, do nada. Precisamos ter cuidado, conquistar a confiança dela primeiro...
     -Não.- disse Italo- Não temos tempo suficiente para isso. Você mesma disse que os sonhos dela estão mais frequentes, Gabriely.
     -Eu disse que os sonhos estão mais frequentes, e não que devemos nos revelar assim, tão cedo.
     -Não é cedo...- Gabriel se manifestou pela primeira vez- No entanto, devemos ter cautela. Podemos planejar uma forma inteligente de abordar a menina. Italo?
     -Sim?
     -Pode acompanhá-la hoje?  Mais do que ver seus hábitos, precisamos saber como a mente dela funciona. Saber como ela é em sua essência.
     -É claro.
     Nicolas sentiu um misto de contrariedade e alívio. Não sabia se estava pronto para passar a noite cuidando da garota novamente. Sabia que devia ter contado aos demais a reação de Alice ao encarar o espelho, mas algo o impediu. Havia algo na forma como ela reagiu, como se não reconhecesse a si mesma. E ele sentia, de alguma forma, que tinha algo a ver com isso tudo, mas não sabia o que era. Precisava saber o que era antes de passar a informação aos demais.
     -Gabriely...- disse, de um jeito que a irmã sempre associava a uma explicação mal formulada.
     -O que foi?
     -Vou tomar um banho e dormir. Me acorde caso seja necessário- disse, já levantando da mesa, ciente dos olhares confusos atrás de si.
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     Uma vez em seu quarto, Nicolas trancou a porta. Algo o estava incomodando nessa história, algo que ele simplesmente não conseguia distinguir. Desde a morte dos pais, pouca coisa o incomodava- sabia que as piores coisas imagináveis já haviam acontecido, o que viesse após isso era bobagem. No entanto, havia uma sensação de que as coisas mudariam em breve, uma inquietação que nunca havia sentido.
     -Isso é maluquice. É só uma garota- disse consigo mesmo.
     Já fizera isso antes. Não seria a primeira vez em que teria que contar a alguém sobre o mundo em que viviam- não o mundo bom, em que os monstros só existiam em pesadelos- mas o mundo que a maioria das pessoas preferia ignorar. Quando os pais morreram, restou a ele a obrigação de contar a Gabriely sobre esse mundo. Sabia que os pais queriam seguir a tradição, esperar até que a filha caçula fizesse a transação, mas em vista de tudo o que ocorrera, essa já não era uma escolha. Nicolas lembrava de ter sentado ao lado da irmã, após o funeral dos pais, e revelado a verdade a ela.
     -Há coisas que você não sabe.- dissera- Todas as vezes em que você diz ter sonhado o sonho de outra pessoa... Você é especial, Gaby. Toda a nossa família era. E foi isso o que levou nossos pais; as pessoas às vezes querem ser especiais e acham que conseguirão isso derrubando quem tem algo que elas não têm.
     -O que isso quer dizer?- dissera Gabriely, e naquele momento, Nicolas sabia que ela estava à beira de lágrimas.
     -Você realmente vê os sonhos de outras pessoas. Vai levar tempo até você realmente entender, mas eu vou estar com você. Vai dar certo.
     -Se foi por isso que nossos pais se foram, eu não quero saber. Não me conte.
     Uma batida na porta trouxe Nicolas de volta ao presente. Esfregou os olhos, cansado da noite insone, e foi abrir a porta, surpreendo-se ao ver Italo.
     -Tem algo que eu precise saber antes de ir ver a menina?- perguntou o amigo, sem rodeios.
     -Não, nada. Mas não está muito cedo? Pensei que você fosse ao entardecer.
     -Sim, eu vou, mas você provavelmente passará o dia dormindo, está com uma cara horrível.
     -Obrigado, sempre é bom ser elogiado- respondeu Nicolas sem humor algum, já fechando a porta.
     Era o começo de um longo período de insonia, e ele sabia disso.